Limites do Humor
Leo Lins foi longe demais.
Depois de quarenta anos de prisão, o comediante enfim foi solto. Sentindo o aroma fresco da liberdade, marcou seu primeiro show para o sábado daquela semana. Os fãs estavam em polvorosa: finalmente Lins estava livre, leve e solto. Pronto para destilar seu humor ácido e receber sua remuneração em boas risadas massageadoras de seu ego. No sábado a noite, a entrada do teatro estava lotada de gente e carros chegando. Quando o público se acomodou nas poltronas vermelhas, Leo Lins entrou em cena como de praxe e começou a tagarelar no microfone. Seu novo material contava a vida na prisão e era diferente de tudo que seu público já tinha ouvido. Piadas como do sabonete que caiu no chão no meio do banho com presidiários e sobre o crime organizado ser meio desorganizado caíram como uma luva com a audiência. Em determinado momento do espetáculo, o comediante conseguiu uma façanha nunca antes alcançada nem por ele. Proferiu uma única piada capaz de ofender um número recorde de grupos minoritários, marginalizados e/ou dotados de doenças graves. Com pouco mais de dez palavras, Leo apresentou o megazord do politicamente incorreto, uma espécie de triplo homicídio em forma de chiste, um gracejo digno de Oppenheimer: atômico. Em questão de segundos, foi proibido o stand up no país.
Nas semanas seguintes, as principais capitais brasileiras foram inundadas por manifestantes pedindo a relegalização do stand up comedy e a volta da liberdade de se fazer humor no palco sem filtro ou noção. Os congressistas, juízes e o presidente não deram a mínima. A arte dos colegas de Leo Lins tinha se mostrado uma arma letal contra o bom senso e a convivência em sociedade. O tempo passou e a revolta popular foi murchando. A maior parte da população foi se acostumando a viver sem stand up. Era como se o stand up nunca tivesse nem existido.
Meses depois. Era uma noite quente na cidade. Clóvis Viana atravessou a rua e parou diante de uma grande porta de ferro. Tocou o interfone.
-Senha?
-Liberdade de expressão.
A porta se abriu. Dentro do ambiente, uma sala de estar. Clóvis caminhou em frente e foi para a cozinha. Abriu a porta da geladeira e entrou. Ao cruzar o portal refrigerado, Clóvis estava agora em um ambiente de luz baixa, repleto de bebidas, risadas e um sujeito supostamente engraçado no palco. Era um clube de comédia clandestino. O calor humano contrastava com o gelado do refrigerador. O público aplaudiu e o comediante saiu do palco. Clóvis foi até o balcão do bar.
-Qual o próximo show?
-Por hoje acabou. - respondeu o barman com uma camiseta do Comedy Cellar com pizzas embaixo do braço.
-Acabou?
-É, a gente tá precisando terminar cedo porque o barulho até tarde tava chamando a atenção da vizinhança.
-Poxa, mas eu tô na seca…
-Quantos dias?
-Três semanas já. Tô subindo pelas paredes.
-Volta amanhã que aqui tem todo dia.
-Beleza…
-Escuta, tô vendo que tu tá numa abstinência braba. Vou te indicar um lugar pra hoje, mas o pico é barra pesada, só piada densa, sabe?
-Eu quero, eu quero! Onde é?
-Vou anotar aqui o endereço. Mas vai com muito cuidado que os tiras estão de olho. Tá perigoso ali.
Clóvis abriu a porta da geladeira e saiu, seguido por outros clientes do clube. No beco ao lado, um homem de sobretudo e chapéu oferecia piadas a quem passava.
-Quer piada de gordo? De loira? De português? Purinha.
Depois de algumas baldeações de metrô e trem, Clóvis chegou a uma vizinhança escura e sinistra. Nenhuma vivalma na rua. Prédios e casas abandonados, pichados e detonados. Caminhou a passos largos com os olhos atentos e o papel com o endereço em mãos. Virou algumas esquinas até chegar em um sobrado caindo aos pedaços. Bateu na porta. Nada. De repente, ouviu o som de sirenes e começou a suar frio. Voltou a bater na porta, agora com muita força. A maçaneta girou e Clóvis foi puxado para dentro do lugar por uma ruiva misteriosa cheirando a cigarro.
-Vem comigo.
Ela o conduziu escada abaixo até o porão do sobrado. Estava lotado. Tinha gente rindo pelos cotovelos e saindo pelo ladrão. Clóvis não conseguia enxergar o palco, mas acreditava que existia um porque uma voz ressoava estourada quase incompreensível pela péssima caixa de som. Ele foi se enfiando no meio das pessoas tentando chegar mais perto do show. Quando conseguiu alguma visibilidade, viu o que parecia ser o homem em pessoa: Leo Lins. Naquele instante, Leo fez uma piada que incomodou alguns rapazes da platéia, que vaiaram. Os fãs mais aguerridos de Leo não gostaram nenhum pouco da vaia e partiram para o embate.
-Qual é? Vocês não gostam de humor não?!
-Gostamos, mas não teve graça.
-Vaiando um show de comédia?? Foi só uma piada!
-Minha irmã tem AIDS, cara.
-O meu tio também, e daí?
-O meu avô tem alzheimer!
-E eu sou autista e não me ofendi. Tá ofendido, vai pra casa, seu maricas!
A discussão logo esquentou e um dos Leo Liners deu um soco na cara. A briga foi tomando conta até ficar generalizada. Sem se mexer, Clóvis levou um tapa no pescoço e um pontapé no saco. Ele foi se protegendo com os cotovelos e navegando para alcançar a saída daquela rinha de asnos. Com seus dons adquiridos nas aulas de natação na infância, contornou o mar de gente enfurecida e subiu escada acima. Não sem antes levar socos, chutes e mais um pescotapa, claro. De olho roxo e nariz sangrando, Clóvis encontrou a porta da rua e, ao pisar na calçada, se deparou com a polícia do riso. Esse esquadrão policial tinha como tarefa rastrear e interditar shows de stand up ilegais.
-O show é no porão dessa casa. - dedurou Clóvis na esperança de ser poupado pelos tiras.
-Você vem com a gente. - respondeu o policial Carlos sacando as algemas. - Chame reforços, Garcia.
Logo, uma dezena de carros de polícia já estavam no local. Algemado, Clóvis assistiu de dentro da viatura os policiais prendendo um por um dos frequentadores do local. Quando a cena de filme terminou, Clóvis notou uma pessoa faltando. Onde estava Leo Lins? Os policiais já estavam prestes a partir quando ele avistou uma figura se esgueirando na escuridão. Pelo sorriso, reconheceu: era Leo Lins, mas ele logo sumiu.
Clóvis foi em cana. Para sua grande surpresa, o presídio tinha se transformado em um festival de stand up. Shows noite e dia com os maiores e menores nomes da comédia nacional. Depois de um mês, Clóvis não aguentava mais. Tinha enjoado de tanta piada de pau e tudo que queria era sair dali. Conseguiu um habeas corpus e sua liberdade. Para acabar com a tortura cômica nos presídios, tornou-se um ativista pela liberação do stand up e, depois de muita luta e debate, a prática voltou a ser legal, com a devida regulamentação e fiscalização. Agora todas as casas de comédia eram obrigadas a ter algumas medidas de segurança: fones de ouvido para quem não quiser ouvir determinada piada, teste psicotécnico e terapia semanal para os comediantes, e um radar de limite do humor. Os radares começaram a ser usados para detectar e registrar infrações de comicidade, auxiliando no controle do humor e na prevenção de crimes no palco. Com essas medidas, o stand up virou uma prática segura e consciente. Muitos comediantes abandonaram a profissão por não conseguirem respeitar os limites do humor. Alguns viraram rappers, outros pastores, Leo Lins, por sua vez, passou a fazer seus shows em russo. Seus fãs foram obrigados a aprender um novo idioma. O resto do país nunca mais entendeu uma única piada dele. Tudo ia bem até Putin assistir seu especial no YouTube.